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O dilema entre preparar as pessoas para o mundo ou o mundo para as pessoas


Você já deve ter lido quanto tem aumentado os casos de racismo, assédio moral, sexual, abuso de menores e uma série de outros atos que hoje são considerados crimes. Na minha visão, a impressão errônea é de que esses crimes aumentaram. Quem é preto, mulher e quem passou por abuso quando criança, sabe que, na verdade, isso sempre existiu. E muito!


Qual a diferença então? Porque parece que hoje em dia tem mais disso do que antes? Porque parece que hoje as coisas acontecem muito mais do que "antigamente"?


Pra explicar, deixa eu te contar uma história rápida. Eu tive muitos problemas ortopédicos durante a minha vida. Nenhum osso quebrado, mas muitas tendinites. E precisei fazer muita fisioterapia. Isso desde os meus 17 anos. Me lembro que, nessa época, há uns 25 anos atrás (hoje eu tenho 42), as clínicas de fisioterapia não eram tranquilas e eu podia ir quando quisesse. Na última vez que eu precisei de fisioterapia, há uns 10 anos atrás, as clínicas estavam cheias e eu precisei agendar horário e quase não consegui.


Me lembro de entrar na clínica e ver gente de idade, pessoas adultas e jovenzinhos fazendo fisioterapia. As câmaras com os aparelhos lotadas e muito revezamento na parte de exercícios. Eu vendo aquele monte de gente pensei: "Cacara! O que aconteceu? Quanta gente estropiada! Aumentou o número de gente com problema, só pode!" Mas então eu me dei conta, não era nada disso! Na verdade, a condição do país havia melhorado e mais pessoas tinham acesso a esse tipo de tratamento. Sempre teve gente com dor, com tendinites, com artrites, bico de papagaio e por aí vai. O que nem sempre teve foram clínicas e acesso mais fácil a elas.


Pois bem, voltando ao tema lá do começo, penso que é exatamente isso que estamos passando hoje em dia no nosso país e em muitos outros do mundo. As pessoas começaram a compreender que não devem se calar diante daquilo de errado que acontece. A minha geração e a geração anterior, nós fomos educados para não falar de certos assuntos. Era tabu falar sobre abuso, assédio, traição, racismo. Fomos educados para evitar isso e, se não conseguíssemos, o problema era nosso.


Quando eu era criança, eu brincava na rua muito. Meu pai me ensinou que, se acontecesse uma briga e eu estivesse em menor número, ou quem eu estivesse brigando fosse maior, que eu podia pegar o que tivesse a mão, um pedaço de pau, uma pedra, e dar com tudo nessa pessoa e fugir. Meu pai me ensinou a sobreviver num mundo violento.


No ambiente de trabalho, quando chefes gritam com funcionários, xingam, ridicularizam, ofendem e assediam, aprendemos a nos calar para manter o emprego. "O mundo corporativo é assim!" Pra garantir a comida, a sobrevivência, a paz, fomos educados a tolerar e aprender a viver nesse mundo, com algumas pessoas muito ignorantes, muito mal educadas, equivocadas em suas convicções e cheias da certeza de que é assim mesmo que tem que ser, manda quem pode, obedece quem tem juízo.


Pois eu penso que essa grande indignação e o aumento no número de denúncias da violência que sempre existiu, marca justamente o ponto de virada do mundo. Se trata de uma mudança de consciência das pessoas. Entender que as pessoas agressoras, valentonas, opressoras, assediadoras, abusivas e ignorantes, estão erradas. Não importa a posição que estão, não importa se são os donos das empresas, os donos da fazenda, o presidente da câmara, do senado, do STF ou do Brasil: todos devem ser respeitosos. Todos devem tratar uns aos outros com respeito, educação e cordialidade.


E esse é o normal. Não o novo norma, mas o normal que se espera, que precisa existir pra que as pessoas possam se relacionar da melhor forma possível. Com entendimento, com consenso, respeito às diferenças, inclusão!


Há quem diga que isso é mimimi. Eu acho interessante as pessoas que dizem isso, afirmando "eu sofri calado!" "eu passei por isso e mesmo assim cresci!" "eu fui assediado e ainda sim cheguei lá". Que pena! Que pena que você teve que passar por isso. Que pena que a raiva, o assédio, o racismo tenham sido seu combustível. Porque sim, ele queima e impulsiona. Mas eu quero falar de um outro combustível que precisamos para esse novo mundo. E esse combustível é o amor.


Sim, o amor. Não só o amor do sentimento, mas o amor da forma de se tratar. De ser honesto, gentil, respeitoso. De ser educado, cordial e compreensivo. De discordar e dizer não sem ter medo. De concordar e dizer sim simplesmente por querer. De olhar não somente para os interesses próprios ou dos nossos pequenos grupos, mas do impacto das nossas ações em outras pessoas. Desse amor.


E estender esse amor não somente para as vítimas desses nossos problemas modernos, mas também para aqueles que executam e querem perpetuar esse modo de viver. São pessoas apegadas ao passado, à ilusão de poder que a força sobre os outros lhes dá. De que dominar as pessoas as torna maiores, quando na verdade, as torna pequenas. De que a violência é sua força, quando na verdade é sua fraqueza. De que a influência que exercem baseada no medo não é influência e que as pessoas que tem medo delas, não as salvariam se elas precisassem.


Precisamos preparar o mundo para as pessoas. Para que as pessoas sejam amadas, respeitadas, aceitas como são, ouvidas indiferente da sua cor, religião, orientação sexual, partido político ou time de futebol. E essa mudança virá dessa forma: com a indignação pacífica. Em não aceitar mais que numa partida de futebol, seja lá quem for que agir de forma racista, que isso não seja tolerado. Que numa sessão da câmara, um deputado que tocar indevidamente uma colega não saia impune. Que crianças que são abusadas tenham voz e apoio dos pais e das autoridades. Que mulheres que denunciam ameaças de homens abusivos sejam protegidas. Que pessoas que são LGBTQ+ sejam acolhidas em qualquer religião que se sintam confortáveis sem ter que mudar a forma com que se relacionam com outras pessoas.


E eis agora o grande dilema: além de incentivar as vítimas a se manifestarem, precisamos educar as pessoas que ainda cometem essas falhas. Educar a entender que está errado, a perceber que não estão agindo certo e porque. Sim, temos que explicar o porque! Porque muitas dessas pessoas reproduzem aquilo que aprenderam, seja vendo os pais, os tutores, os professores, ou mesmo reproduzindo o que sofreram. Pessoas que foram abusadas, sexualmente, racialmente, moralmente, acabam muitas vezes reproduzindo o que sofreram, por não terem podido receber apoio e orientação, ou então porque disseram que era normal passar por aquilo. E se era normal, logo passam a fazer com os outros também. Não estou dizendo que são todos os casos, mas muitos casos de pessoas que cometem violência reproduzem a violência que sofreram.


Se não acolhermos, dermos chance às pessoas que estão nessas posições para se abrirem, contarem sua história, mudar sua perspectiva, mudar seu entendimento e se permitirem se curar por dentro, se perdoar e perdoar sua história, nós ainda viveremos num mundo dividido.


Sim, as novas vítimas levantarem a voz e não aceitarem é o primeiro passo para quebrar o ciclo. Devemos tomá-lo com coragem. Mas precisamos acolher aqueles que não entendem que isso é necessário para que o mundo mude, e que essas pessoas que perderam o lugar que tinham, tem um novo lugar disponível e melhor, desde que possam ocupar e cuidar dos demais com amor.


É uma conversa muito profunda para um artigo. Tem muitos pontos que falei aqui que vou voltar a falar com você. E que sei que muitos deles vão te fazer olhar as vítimas e perseguidores de uma forma diferente. Que talvez, eles não sejam tão diferentes. Mas é hora de dizer que não é ok sofrer e compartilhar o sofrimento. É hora de encerrar esse ciclo vicioso e começarmos um ciclo virtuoso, com amor e educação para amar.


E isso começa agora, comigo e com você.


Abraços fraternos,

Paulo Bomfim

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