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2020 representa para o Mundo o mesmo que 1997 representou para meus pais


Paulo Bomfim Oficial Artigo

Eu penso que, para o mundo, o ano de 2020 representa o mesmo que 1997 representou para meus pais.


Meu pai estava aposentado há pelo menos 4 anos. Ele se aposentou cedo, aos 51 como funcionário público. Não ganhava muito, mas a casa estava construída, minhas irmãs já eram adultas e cuidavam da própria vida, eu estava crescendo e pelo jeito iria me virar também. Aos seus olhos, pelo entendimento que tinha da vida, já tinha cumprido sua missão: nasceu, cresceu, casou, teve filhos, criou os filhos, construiu uma casa, trabalhou, se aposentou e agora, bastava esperar a morte.


E ele estava esperando. Aliás, praticamente convidando a morte para se juntar a ele. Meu pai fumava 2 maços de cigarro por dia. E bebia nas suas folgas consideravelmente, mas depois de aposentar, passou a beber muito, todos os dias. Quando pedíamos para ele parar, que aquilo acabaria o matando, ele nos dizia que quando morresse, morreria e pronto. E sobre parar de fumar, se um dia um médico (que ele nunca visitava) dissesse que ele precisava parar, ele pararia.


Meu pai não teve tempo de ouvir o médico antes de receber uma visita inesperada: não, não foi a morte. Foi uma trombose grave, juntamente com uma forte diabetes. A combinação não foi letal, mas o impacto que ela causou no meu pai foi devastador. Numa tarde de sábado, quando estava em Sorocaba, visitando minha irmã, não aguentou de dor numa das pernas e quando foi levado às pressas ao médico, a notícia foi um choque: sua perna direita estava totalmente comprometida e precisava ser amputada imediatamente, na altura do meio da coxa.


Na sequência, na tentativa de salvar a outra perna, fizeram uma cirurgia substituindo uma artéria compropetida por um cano artificial, para irrigar a perna esquerda. As semanas que seguiram à amputação foram de muita dor, sofrimento e humilhação. A diabetes quase tirou a visão dele. Ele passava o dia totalmente estrábico. Não conseguia ir ao banheiro e fazia as necessidades na fralda, tendo que ser trocado por nós. Seguia fraco, com dores, com fome, sem poder comer o tanto que sentia de fome. E então, no meio desse caos de dores e mal estar, a crise de abstinência do cigarro bateu. Forte. Ele sentia muito mal estar e brigava conosco quando queria fumar. Pedia apenas um cigarro. Minha mãe não deixava, explicava que ele não podia.


Por conta da forte diabetes, a cicatriz da perna amputada começou a infeccionar e nos causou grande preocupação. Redobramos os cuidados. E do outro lado, a perna esquerda, que estava quase sem movimento, começou a demonstrar que estava comprometida também, criando feridas que ficavam cada vez maiores. Ao ponto dos médicos conversarem e decidirem que seria melhor também, amputar aquela perna, na altura da metade da coxa. Eles disseram que ou cortavam de uma vez ou precisariam cortar várias vezes, até chegar ali. Meus pais, com muita dor e medo, concordaram.


Meu pai chorava. Chorava de dor, de tristeza, de revolta. Como Deus podia ter feito aquilo com ele? Por que Deus teria deixado ele sofrer tanto no final da vida, depois de ele ter feito tudo que fez, cumprido sua missão, feito o que deveria nessa terra? Meu pai não se conformava.


Num dia em que ele estava com uma grande revolta, enquanto minha mãe levava o café da tarde pra ele, com pouca comida como deveria, ele se irritou por ver que o que tinha no prato não iria saciar sua fome. Ele pediu mais comida, minha mãe explicou que não podia dar. Então ele pediu novamente para poder fumar, apenas um cigarrinho. E quando minha mãe disse novamente não, que ele tinha sofrido aquilo tudo por causa do cigarro, meu pai explodiu. Gritou, brigou, xingou minha mãe e disse que só não fumava porque não podia ir ao bar comprar o cigarro que queria.


Naquele dia minha mãe estava muito cansada também, muito triste. Depois do que ele fez, ela disse: "muito bem" e saiu de casa, voltando depois de 10 minutos com um maço de cigarro que ele costumava fumar. Ela colocou junto dele, com uma caixa de fósfores e disse: "aqui está, não diga que não faz nada por minha causa. Você, melhor do que ninguém, sabe o que aconteceu contigo. Quer fumar, fume!" e saiu do quarto.


Meu pai ficou olhando pro cigarro longamente. O corpo dele, sofrendo com a abstinência de quem fumou por quase 40 anos, sentia um impulso imenso de pegar, acender e dar uma boa tragada, como ele dizia e sentir o prazer de fumar. Mas ele estava ali, sentado na cama, o corpo multilado, quase cego, incapacidado de fazer qualquer coisa sozinho, sem poder dirigir o carro que batalhou a vida inteira pra comprar, sóbrio, tendo que amargar suas quedas, dores e situação sem poder fugir pela inconsciência que o álcool trás. Ele sabia que não seria só um trago. E ele sabia, mais do que nunca, que havia coisas piores que a morte. Ele sabia de verdade a dor que tinha sentido, o que havia sofrido, o que estava sofrendo naquele momento, e que muito provavelmente, haveria muito mais sofrimento esperando ele se seguisse naquele caminho de novo.


Meu pai amassou o maço de cigarros e o jogou no lixo. E nunca mais pediu outro nem culpou minha mãe ou ninguém pela sua situação. Naquele dia, uma grande mudança se passou dentro dele. Ele assumiu a responsabilidade pela sua vida. A vida difícil que levou, as coisas que sofreu, a dureza da sua infância, os maus tratos do pai e da madrasta, o abandono da mãe. A violência que sofreu nas ruas. Os erros que cometeu. As escolhas ruins que fez e os caminhos que ele mesmo tomou que o levaram até ali. Não, naquele dia meu pai não se tornou santo. Mas se tornou consciente o suficiente pra saber que precisava tomar outros caminhos, fazer outras escolhas, seguir por outra direção.


E foi o que ele fez. Começando a fazer as pazes com Deus e consigo. E pedir desculpas a minha mãe. Meu pai foi seguindo seu tratamento e melhorando. E com o tempo, conseguiu fazer as suas próprias coisas sozinho. Adaptou seu carro e começou a dirigir. Voltou a trabalhar. Entregava panfletos, vendia chocolates que minha mãe fazia, trabalhava até de motorista particular.


Não, meu pai não se tornou santo. Errou muitas outras vezes na vida. Mas não nas mesmas coisas. E procurou fazer mais o bem e ajudar mais as pessoas. Viu que sua missão era ajudar as pessoas e ajudou quem pôde, até mais do que pôde. Ajudou outros deficientes com informações, contando a eles sobre os direitos que tinham. Inspirando pessoas que estavam tristes e que tinham sofrido amputações a retomar a vida. Ajudou famílias que precisavam ir daqui para lá a se locomoverem. Arrumava cadeiras de rodas pra quem precisava e viveu para fazer o bem pra muita gente.


Eu penso que, para o mundo, o ano de 2020 representa o mesmo que 1997 representou para meus pais. O ano do baque. O ano do choque. O ano em que o mundo deu um jeito de dizer: se vocês continuarem por esse caminho, haverá mortes e haverá coisas piores que a morte!


É hora de revermos nossas posições e crenças. Analisarmos nosso comportamento! Como estamos tratando nosso próximo? Como estamos tratando a nós mesmos? Se não respeitarmos quem somos, não podemos respeitar os outros. Se não amarmos quem somos, não poderemos amar nossos irmãos e irmãs como eles são. Enquanto buscarmos descarregar no mundo nossas raivas e frustrações, o mundo descarregará de volta em nós. Isso já está acontecendo!


Está em tempo de perdoarmos e pedirmos perdão. De olharmos além dos nossos interesses pessoais, além dos nossos pequenos grupos. Cedermos nossos desejos e vontades por um bem maior. Abordar temas que realmente são significantes: como diminuir a poluição, para que possamos respirar melhor? Qual a melhor forma de nos alimentarmos, para que todos possam comer e bem? Como devemos cuidar da nossa saúde para não ficarmos dependentes de remédios e tratamentos que podem ser evitados? Como me educar e compartilhar essa educação, para que possamos saber cada vez mais e esse conhecimento ser aplicado para o bem estar de todos? Qual a melhor forma de aumentar a prosperidade e a felicidade minha e das pessoas que me cercam, para que o mundo tenha mais gente feliz e fazendo o bem?


Temos nas mãos a oportunidade de despertar. De cessar brigas uns contra os outros, mas todos em prol do bem. Parar de atacar pessoas e começar a construir ideias. Deixar de seguir falsos cristos e falsos profetas, falsos salvadores e lobos em pele de cordeiro. Devemos nos unir uns pelos outros e ver se os frutos das árvores que estão sendo plantadas são verdadeiramente bons. Bons como aquele bom samaritano, que socorreu o homem caído. Bom como a viúva, que depositou seu óbulo no altar, dando tudo que podia. Como aquele bom mestre que, diante de uma pessoa que comete um erro e uma turba que quer apedrejá-la, tem calma e humildade para dizer que aquele que nunca tiver cometido um erro que atire a primeira pedra.


Que possamos perdoar não sete vezes, mas setenta vezes sete vezes. Que possamos amar a todos, o bom e o mal. Que possamos perdoar e pedir perdão. Andar sem julgamento, mas com humildade. Com desejo de crescer e ajudar sem olhar a quem.


2021 se aproxima e junto com o novo ano, a oportunidade de viver como vivíamos ou de nos transformarmos em algo melhor, assim como meu pai quando teve a oportunidade de voltar a fumar. Eu espero que, assim como ele, lembremos do sofrimento que não queremos mais e possamos aproveitar essa chance para mudar nossa história, mudar nossas vidas, mentes e corações. Porque só assim, poderemos mudar o mundo. Eu e você.


Um grande abraço e que Deus te abençoe sempre.

Paulo Bomfim


P.S.: O nome do meu pai é Laudelino da Silva e da minha mãe, Neusa Bomfim da Silva. Meu pai retornou à pátria espiritual em 2 de janeiro de 2009, devido a um câncer no fígado. E minha mãe continua sua vida junto a nós, curtindo seus filhos, netos e bisnetos, sempre com um sorriso lindo.

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